Nesta exposição, encontramos referenciados alguns tipos de zonas húmidas, desde as turfeiras, zonas ripícolas e ainda os pauis, que apresentamos em seguida, mas dada a ampla definição de zona húmida, constatamos a existência de inúmeros outros tipos (RAMSAR CONVENTION SECRETARIAT, 2006: Artigo 6.1).
Uma zona húmida pode ser definida como “área natural ou artificial de sapal, paul, turfeira, ou água, permanente ou temporária, com água estagnada ou corrente, doce, salobra ou salgada, incluindo áreas marinhas cuja profundidade na maré baixa não exceda os 6 metros”. Esta definição, retirada da Convenção de RAMSAR, foi alargada, incluindo-se “as zonas ribeirinhas ou a elas adjacentes, assim como ilhéus ou massas de água marinha com uma profundidade superior a seis metros em maré baixa, integradas dentro dos limites da zona húmida” (LEAL, 2011).
Reconhecendo as zonas húmidas como ecossistemas extremamente importantes para a conservação da biodiversidade, saúde, bem-estar e segurança das pessoas que neles vivem ou nas suas imediações, constituiu-se em Fevereiro de 1971 na cidade iraniana de Ramsar a “Convenção sobre Zonas Húmidas”, representando o primeiro dos tratados modernos para a conservação e uso sustentável dos recursos naturais. Esta convenção entrou em vigor em 1975, conta actualmente com 119 países e designou mais de 1000 sítios de importância internacional, cobrindo actualmente mais de 73 milhões de hectares. Portugal ratificou esta convenção em 1980, designando uma Lista de Zonas Húmidas de Importância Internacional. A nível nacional, o primeiro local a gozar deste estatuto foi o Estuário do Tejo em 1980. Actualmente, são 28 sítios Ramsar em Portugal, totalizando 86.581 hectares. A UNEP (United Nations Environmental Programme) estima que as zonas húmidas ocupam cerca de 570 milhões de hectares, quase 6% da superfície da Terra, sendo que desta área, 30% corresponde aos pauis e 20% aos pântanos.
Funções
As zonas húmidas são dos ambientes com maior produtividade do mundo. São berços de diversidade biológica, autênticas reservas genéticas, habitats privilegiados de fauna e flora, fornecendo água e assegurando a produtividade primária essencial à sobrevivência de variadíssimas espécies. O arroz, por exemplo, é uma planta comum em zonas húmidas que faz parte da dieta básica de metade da humanidade (LEAL, 2011).
As interacções dos componentes físicos, biológicos e químicos de uma zona húmida (solos, água, flora e fauna), permitem às zonas húmidas desempenhar muitas funções vitais, tais como o controlo das inundações, purificação e retenção de água, retenção de sedimentos, nutrientes e poluentes, suporte da cadeia trófica, estabilização da orla costeira e controlo de erosão, protecção contra fenómenos climáticos extremos como a queda de chuva, mitigação de cheias, recarga de aquíferos, descarga das águas do subsolo entre outras. Além disso são ainda locais propícios ao lazer, à educação ambiental, investigação científica, de produção de recursos e de valor patrimonial físico e estético (Millennium Ecosystem Assessment, 2010).
Classificação
Segundo a Convenção de Ramsar, adoptou-se uma classificação de zonas húmidas que inclui 42 tipos, segundo três categorias: marinhas e costeiras - incluem lagoas costeiras, costas rochosas, pauis, sapais e recifes de coral; interiores - como as fluviais ou as lacustres e zonas húmidas de origem humana ou zonas húmidas emergentes, que incluem campos agrícolas irrigados, salinas, reservatórios, poços de cascalho, lagoas de tratamento de água, pedreiras ou reservatórios.
Zonas Húmidas nos Açores
Nesta exposição, encontramos referenciados alguns tipos de zonas húmidas, desde as turfeiras, passando pelas zonas ripícolas e ainda os pauis, mas conforme a definição, constatamos a existência de inúmeros outros tipos de zonas húmidas.
Nos Açores, as Fajãs da Caldeira de Santo Cristo e dos Cubres, na ilha de São Jorge (Foto 1), um sistema de lagoas costeiras, foram o primeiro local açoriano a ser reconhecido oficialmente pela Convenção de Ramsar desde 2005. As fajãs destacam-se pela sua singularidade geológica e geomorfológica, pelos seus sistemas biológicos únicos, servindo de habitat a diversas aves nativas e migratórias, além de incluírem sistemas lagunares costeiros formados por processos de deslizamento das encostas escarpadas com características específicas e raras.
Foto 1: Fajã da caldeira de Santo Cristo, com zona húmida costeira associada, na costa Norte da ilha de São Jorge.
Foto 2: Lagoa do Fogo, zona central da ilha de São Miguel.
Outras zonas húmidas importantes nos Açores são as lagoas do Fogo (Foto 2), das Furnas e das Sete Cidades em São Miguel, diversas lagoas na ilha do Pico, nas Flores, caldeiras como a que existe no Faial, a zona húmida das Lajes do Pico, lagoa do Capitão na mesma ilha, etc. Em Junho de 2008, aprovados 11 novos locais correspondendo a uma área total de 12790 hectares protegidos ao abrigo da convenção de Ramsar nos Açores (Quadro A).
Um paul define-se como um tipo de ecossistema lagunar, sendo que, juntamente com as turfeiras e os pântanos, inclui-se na categoria de zonas húmidas palustres (RAMSAR, 2008 cit. in. LEAL, 2011).
Paul da Praia da Vitória
Este paul localiza-se na cidade da Praia da Vitória, na ilha Terceira. No início do século passado enchia de água salgada em cada maré por percolação através da areia porosa, apesar de também receber água doce proveniente da queda de chuva e da água subterrânea das terras mais altas adjacentes (Foto 3).
Foto 3: Paul da Praia da Vitória, ilha Terceira. (Clique para ampliar)^.
O Tenente Coronel José Agostinho cit. in BANNERMAN & BANNERMAN, 1966, um dos primeiros grandes naturalistas e ornitólogos dos Açores, autor de extensa obra no séc. XX, reportou que as gaivotas, garajaus e borrelhos-de-coleira-interrompida (Charadrius alexandrinus) nidificavam no local, tal como os visitantes abibe (Vanellus vanellus), tarambola-cinzenta (Pluvialis squatarola), maçarico-real (Numenius arquata) e os pilritos-sanderlingos (Calidris alba). A área deste ecossistema sofreu uma redução enorme nos anos 40 e 50 do século passado por via do seu aterro. O paul foi recentemente recuperado pela autarquia da Praia da Vitória, estando actualmente integrado no “Parque Ambiental do Paul da Praia da Vitória” (Fotos 4 e 5).
Foto 4: Parque ambiental do paul da Praia da Vitória, com múltiplos usos recreativos. À direita na imagem, a zona húmida recentemente recuperada.
Foto 5: Ilhotas criadas artificialmente aquando dos trabalhos de recuperação do paul.
Actualmente, observa-se apenas uma espécie nidificante neste local, porém com um grande valor a nível conservacionista: a galinha d’água (Galinulla chloropus - Foto 6). Inúmeras outras espécies (Fotos 6 e 7) têm sido observadas regularmente ou ocasionalmente neste paul (PEREIRA,C., comentário pessoal; BARATA, comentário pessoal; www.birdingazores.com), como as seguintes:
Foto 7: A presença da garça-pequena-branca (Egretta garzetta) é comum ao longo do ano. Paul da Praia da Vitória, ilha Terceira.
Foto 8: Bando de Zarros-negrinha (Aythya fuligula) sobre o espelho de água.
Paul da Pedreira do Cabo da Praia
Este paul tem origem artificial e surgiu aquando das escavações da pedreira do Cabo da Praia, no início dos anos 80 para a construção do porto oceânico da Praia da Vitória. A antiga pedreira do Cabo da Praia constitui, segundo a classificação previamente apresentada, uma zona húmida emergente face à sua origem artificial (Foto 8). Pelo facto do nível freático estar muito próximo da superfície, deu-se a formação de lagunas costeiras e zonas encharcadas (Fotos 9 e 10) onde se encontram comunidades costeiras de tendências halófitas. Constitui um local de dinâmica ornitológica singular, formando um abrigo climático para diversas aves aquáticas, particularmente as pernaltas, apresentando-se como remanescente da situação que prevalecia outrora no Paul da Praia da Vitória.
Foto 8: Paul da Pedreira e parque de combustíveis em segundo plano, Cabo da Praia, ilha Terceira. (Clique para ampliar).
Foto 9: Aspecto geral do Paul da Pedreira. Cabo da Praia, ilha Terceira.
Foto 10: Detalhe das poças de maré que formam o Paul da Pedreira.
A periodicidade de inundação das poças que compõem o paul está ligada às marés, mas também é influenciada pela precipitação e pela água subterrânea (aquífero de base). A água é empurrada para cima devido à pressão hidrostática da maré enchente, eventualmente emergindo a partir de fissuras e aberturas na base rochosa, quando a maré baixa, a água recua de volta para ocupar os interstícios entre a rocha (MORTON et al., 1997).
Caracterização Biológica
Flora
O Paul da Pedreira do Cabo da Praia encontra-se coberto por alguma vegetação pioneira, tendo emergido um padrão de zonação “intertidal” à volta das mesmas. Agrupamentos de Ruppia maritima registadas previamente nos Açores apenas em São Jorge, na lagoa da Fajã dos Cubres, ocorrem nestas poças. A zonação botânica inclui a cana (Arundo donax - Foto 12) nas cotas superiores e na base nas periferias da pedreira, já é possível observar a instalação de diversos exemplares de Myrica faya (Faia-da-terra - Foto 13). A estas espécies sucedem, a níveis mais baixos, a perpétua-brava Gnaphalium luteofolium. Abaixo desta, um leito denso de armoles-silvestres (Atriplex hastata) ladeia as poças mesmo acima da influência das maiores marés primaveris. Ainda mais abaixo, e coberta pela maioria das marés, encontra-se outro leito denso de vegetação que consiste inteiramente da planta Spergularia marina, uma planta anual com folhas delicadas, baixas e carnudas, agrupadas em cada ramo (Foto 14). As flores rosa-roxas abrem quando descobertas pela água no brilho da luz do sol, mas fecham quando emersas ou à noite. (MORTON et al., 1997 cit. in. LEAL, 2011).
Foto 11: Poça e flora vascular associada (Spergularia marina).
Foto 12: Espécies como a cana (Arundo donax) que já invadiu a base da pedreira chegando à zona envolvente às poças.
Foto 13: Surgimento de novas espécies de maior porte como a Faia-da-Terra (Myrica faya).
Foto 14: Spergularia marina, espécie que ocupa as zonas inter-marés, formando um tapete denso que ocupa quase toda esta zona húmida.
A quarta planta nesta sequência de zonação é a Ruppia maritima que ocupa os fundos das poças permanentes. As drupas para a colonização de Ruppia maritima podem
ter sido trazidas por aves da Fajã dos Cubres, a um curto voo de
distância. As aves podem ter transferido a espécie e ter facilitado a
recolonização daquele espaço. (MORTON et al., 1998).
A amplitude das marés na pedreira pode atingir 50 cm em média, em
comparação com os 2-3 cm nas Lajes no Pico, Fajã dos Cubres e Fajã de
Santo Cristo, em São Jorge (devido à proximidade com o mar - apesar
deste não poder se visto ou ouvido) e à natureza obviamente porosa do
leito basáltico subjacente, e como o mar está tão escondido, a impressão
que se tem é de observar uma maré terrestre! (MORTON et al., 1998) (Foto 15)
Fauna
Os únicos invertebrados registados nas poças da pedreira, por MORTON et al. (1997), são o anfípode Orchestia editerranea, pequenos gastrópodes prosobrânquios uma espécie do Género Assiminea (descrita por ÁVILA, em 2000, como uma nova espécie para a ciência: Assiminea avilai), a Paludinella littorina e ainda a mosca Psilopa nitidula,
com ovos e pupas na lama e tapetes de algas. Esta comunidade foi
descrita como sendo similar à encontrada no paul da Praia da Vitória,
sugerindo uma continuidade ecológica entre ambos (BACKHUYS, 1975, cit. in MORTON et al., 1997).
Avifauna
O paul da pedreira sendo uma zona húmida recente é especialmente conhecido devido à sua avifauna, considerado um hotspot
- o melhor local do paleártico para observação de inúmeras espécies
neárticas, particularmente as pernaltas (provenientes da América do
Norte) (CLARKE, 2000 cit. in BARATA, 2002). A melhor época do ano para
observação decorre entre Setembro e Março, época de migração dos
territórios de nidificação (localizados na sua maioria na tundra
árctica, ou norte da Europa), para sul ao longo da faixa costeira
africana, interceptando o arquipélago dos Açores, sendo os meses mais
importantes Setembro e Outubro. (CLARKE, 2000 cit. in BARATA, 2002).
Algumas das espécies mais frequentemente observadas no PPCP são as
seguintes (PEREIRA, comentário pessoal; BARATA, comentário pessoal; http://www.birdingazores.com) como as seguintes:
Foto 15: Paul da pedreira do Cabo da Praia. Aspecto geral das poças na maré enchente.
Foto 16: Milherango ou Maçarico-de-bico-direito (Limosa limosa).
O Charadrius alexandrinus encontra-se presente em todos os meses do ano, embora em Junho e Junho sejam os meses em que ocorre com menor frequência. É possível observar-se ainda, entre os meses de Março e Setembro, espécies como:
Segundo MORTON e colaboradores, o borrelho-de-coleira-interrompida (Charadrius alexandrinus - Foto 17) o garajau comum (Sterna hirundo); o garajau rosado (Sterna dougalii) e o pombo-torcaz-dos-Açores (Columba palumbus azorica) são nidificantes no paul da pedreira. O Charadrius alexandrinus encontra-se muitas vezes associado a zonas com uma certa ocupação e perturbação humanas e requer proximidade de água para nidificar precisa da, micro-climas secos e locais com pouca vegetação rasteira, pelo que dificilmente outra espécie limícola encontraria ali condições para se reproduzir. A maior parte das outras espécies de limícolas que existem na Europa nidificam em zonas de turfeiras, na tundra ártica, mas há outras que nidificam em pastagens de altitude, como é o caso das narcejas (Gallinago gallinago).
Foto 17: Borrelho-de-coleira-interrompida (Charadrius alexandrinus) (espécie nidificante no local).
Estado de Conservação e Ameaças
As zonas húmidas existentes no arquipélago, particularmente os pauis, constituem ecossistemas diminutos, fragmentados, com um nível médio de endemismos, singulares nos seus elementos e combinações exclusivas, e apresentando nichos ecológicos em aberto, sendo muito vulneráveis a espécies introduzidas.
Alguns factores de pressão nos pauis referem-se às mobilizações do solo e alterações do regime hídrico subjacente, deposição de resíduos, particularmente os inorgânicos (e.g. sucata e entulho), a prática de actividades recreativas perturbadoras, como o todo-o-terreno motorizado à volta ou por cima de lagoas e de locais de alimentação e nidificação de aves, a prática de caça furtiva de espécies não cinegéticas, apanha de ovos ou juvenis por variados caçadores e coleccionadores, etc.
BANNERMAN, D. A., BANNERMAN, W. M., (1966). A History of the Birds of the Azores - Birds of the Atlantic Islands. (Vol. 3). Edinburgh: Oliver & Boyd.
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MORTON, B., BRITTON, J. C. & MARTINS, A. M. F.. (1997). The former marsh at Praia da Vitória, Terceira, Azores, and the case for the development of a new wetland by rehabilitation of the quarry at Cabo da Praia. [Versão electrónica disponível em: http://www.azoresbioportal.angra.uac.pt/files/publicacoes_MortonBrittonMartins_1997.pdf]. Açoreana, 8(3): 285-307.
MORTON, B., BRITTON, J. C. & MARTINS, A. M. F. (1998). Ecologia Costeira dos Açores. Ponta Delgada: Sociedade Afonso Chaves - Associação de Estudos Açoreanos.
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